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O maior violeiro do Brasil


Publicado originalmente no blog no ar.

Renato Andrade não queria gravar entrevista para o documentário “Chora Viola". Falamos com ele por telefone da redação da EPTV, em Ribeirão Preto, várias vezes. Ele atendia com bom humor, espirituoso, conversava muito - de piadas a considerações sobre a obras de Guimarães Rosa, de quem era leitor compulsivo. Mas não respondia se dava entrevista, não agendava a data, nada. Deixava no ar.

Chegou o dia da viagem, sem definição da parte de Renato Andrade. De Ribeirão seguimos para Brasília, na casa do violeiro Roberto Corrêa, depois entramos em Minas pelo vale do urucuia - o lugar onde Guimarães Rosa ambientou "Grande Sertão Veredas". Um outro violeiro, Paulo Freire, nos acompanhava. Quando era jovem seu pai - o psicanalista Roberto Freire - indicou uma relação de livros indispensáveis a sua formação.

Foi, justamente, Grande Sertão Veredas, o que mais tocou o coração do músico. Numa fase em que os jovens, nascidos em ambientes mais intelectualizados, buscam sua formação no exterior, Paulo Freire tomou caminho do Vale do Urucuia. Lá desenvolveu um aprendizado de viola e vida com seu Manelinho, um lavrador.

Filmamos o reencontro do mestre com o aprendiz. Um fim de tarde, no quintal da casa simples, o toque da viola de seu Manelinho. Dizem que a poesia é o encontro de uma imagem com uma ideia.

O rio abaixo na viola de seu manelinho

Dá ao universo calma

Toque talhado na lida e em folias

O rio abaixo consola

O que no mundo não tem explicação.

Em Buritis, seu Rosa, capitão de folia de reis, próximo de mistérios. Tudo no universo é três, repetia: dos poderes da terra - executivo, legislativo, judiciário, do céu - pai, filho, espirito santo - partes do dia- manhã, tarde, noite. Do vale do urucu ia para Montes Claros, atrás das origens de Tião Carreiro e Zé Coco do Riachão. Um pouco abaixo, em São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito de Diamantina, pegamos a trilha da estrada real- o caminho que a viola fez de Portugal para a alma do sertão. O canto negro de Pereira de Viola entoando versos de Celso Adolfo e Mário de Andrade: " Brasil, nome de vegetal". Deixamos Diamantina num dia de chuva em direção a capital e com certa ansiedade: Renato Andrade nos atenderia?

No dia seguinte ligamos do hotel para Renato:

— Podemos ir na sua casa

— É casa de homem solteiro, se não reparar a bagunça, vai ser um prazer.

Chegamos no final da manhã a um apartamento no bairro da Pampulha, perto do Mineirão. Renato falava muito, sobre vários assuntos e sustentava que não iria gravar o depoimento para o documentário. Saímos para um almoçar num restaurante, perto da casa dele. Voltamos ele fez um café, rimos com seus aforismos. Anotei alguns: definição de música - "saudade de um trem que não sei o que é ", "o progresso é o predador da poesia". Renato se recuperava de uma cirurgia. Observador, apontava entre uma brincadeira e outra as características psicológicas de cada um de nós. Experiente leitor de gente, não errava.

No final nossos prazos pediam uma definição, tentamos ser objetivos. Renato foi claro, não gravaria a entrevista. Saímos chateados. Ele se despediu a moda mineira - "fiquem com Deus ". Durante o documentário percebemos que a viola é uma causa de muitos partidos, grupos de artistas que competem entre si. Havia só uma unanimidade: de Almir Sater a Roberto Freire passando por Mazinho Quevedo: Renato Andrade era o maior violeiro do Brasil. Paciência, ele não queria gravar, não havia como convencer o homem. No dia seguinte a gente ia embora.

O telefone me acordou cedo no quarto do hotel.

— Já estão de pé, inconfundível a voz do Renato

— Estou na cama.

— Acorde o Chico e o Maurício, vamos gravar.

Liguei para os dois companheiros - o repórter Chico Ferreira e o cinegrafista Maurício Glauco -. Eles não acreditaram na mudança de rumos. Meia hora depois a gente se encontrou no café da manhã e seguimos para o apartamento de Renato. Da porta do prédio foi possível ouvir o dedilhado inconfundível de seu instrumento.

Os violeiros gostam de alimentar a lenda de que Renato teria sido o único a ter feito o pacto com o diabo, havia um sexto dedo invisível a tirar som da viola. O próprio Renato fazia certo mistério sobre esse assunto. Nessa hora ficou claro: o pacto de Renato era com a música, o instrumento, uma vida de dedicação. "O diabo não há, o que existe é homem humano, travessia", a frase final do "Grande Sertão- Veredas".

Renato estava bem disposto naquela manhã. Separou suas roupas - uma do capiau e outra do concertista. Como um diretor de si mesmo, já sabia onde seria a gravação: Arraial dos vilela, distrito de Itaguará, a pouco mais de uma hora da capital, pela Rodovia Fernão Dias. No caminho ele explicou. Guimarães Rosa foi médico sanitarista por dois anos na cidade, foi lá que escreveu Sagarana. Nas margens do Rio Pará, Renato vestiu o personagem do capiau. Se equilibrou entre as pedras na margem do rio- nem parecia que estava se recuperando de uma cirurgia - e o som da viola se espalhou pela natureza mineira.

O segundo personagem, o concertista, foi gravado num clube de Itaguara. Renato vestiu paletó e gravata e deu a volta ao mundo em variados ritmos na viola.

Chegamos em Belo Horizonte no final do dia. Jantamos no Chico Mineiro, um restaurante de comida típica, perto da praça da liberdade, de onde seguimos para o apartamento na Pampulha.

Renato se despediu "Fica com aquilo que o capeta perdeu- o céu e a salvação", foi a última frase que ouvi do maior violeiro do brasil. Dois anos depois ele morreu.

Nosso trajeto em Minas tinha mais um capítulo. Seguimos em direção ao sul, num final de julho com céu deslumbrantemente azul, na serra da Mantiqueira. Num belo sitio entre Itajubá, Delfim Moreira e Maria da Fé nosso último encontro era com Ivan Vilela. O som de uma música sua, "Pra matar as saudades de minas" encheu nosso corações de nostalgia: "Saudade de um trem que a gente não sabe o que é ". A viola vai do sagrado para o profano e do profano para o sagrado, nos disse Ivan. Renato, onde estiver, há de ter tudo o que o capeta perdeu.

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